A Cozinha Afetiva
Em
muitos lares, independente de como fomos educados, a cozinha e as refeições são
a forma de ser e estar de muitas famílias. Pessoas que preparam suas refeições
na correria, ou mesmo não preparam, as pedem. Esse assunto vem ganhando destaque
no momento de pandemia em que estamos vivendo, uma vez que as pessoas estão se
arriscando mais na cozinha.
Surgem
novas “musas da quarentena”, como Rita Lobo, Bela Gil e “musos” também, como
Rodrigo Hilbert e mais uma série de chefs de cozinha que nos mostram que
cozinhar é, sim, uma arte.
As
sensações que os cheiros e sabores de certos pratos nos causam nos transportam
para nossa infância, nossa adolescência, algum momento especial de nossa vida.
Outro dia, meu tio me mandou uma foto de um prato de feijoada com a seguinte
mensagem: “lembrei da comida nordestina que sua vó fazia, que saudades! ”.
Em
algum momento da vida, você já comeu alguma refeição quando adulto, por mais
simples que fosse, e sentiu o gosto da infância? E esse gosto foi sentido de
uma maneira tão especial e única que, se você for reproduzir o mesmo prato, não
vai ter o mesmo gosto? Você fecha os olhos e diz: “hummm, isso tem gosto de
infância!”.
Me
lembro de minha “vódrasta” reunindo suas irmãs no quintal dos fundos da minha
casa, meu tio trazia espigas de milho do Ceasa e elas passavam a tarde ralando
as espigas, preparando pamonhas, bolos e outras delícias de milho. E assim o
tempo passava gostoso e sem pressa. Entre risos e muitas conversas, essas
delícias eram feitas.
Uma
das coisas que minha mãe ganhou de herança foi um livro de receitas de minha
avó (que não conheci, pois ela faleceu antes de eu e meus irmãos nascermos).
Aquela foi uma herança muito mais usada por nós do que pela minha mãe. Afinal,
com quatro filhos para criar, sem empregada, máquina de lavar e todas as
facilidades da mulher moderna, ela tinha que se virar e nos alimentar. A comida
era o que dava tempo para fazer... e ela se esforçava!
O
divertido daqueles livros eram as figuras. Não eram fotos com pratos requintados,
e sim desenhos parecidos com os de gibis ou livros infantis. Conclusão:
achávamos que poderíamos pintar aqueles desenhos, dar uma nova cara, passar
canetinha por cima, fazer aqueeelllaaa rabisqueira. Os livros ficavam num
estado lastimável. Neles, tinha no final um espaço em que minha avó escrevia
suas receitas, e muitas coisas me intrigavam. Minha avó escrevia “chícaras” e
não “xícaras”. E o tal do “Bolo de Ananás”, o que era “Ananás”? E o nome da
Uva, que trocaram para “uvaias”? O que foi legal de aprender a ler era que eu
tecia ideias sobre essas coisas, e assim o tempo passava leve. Eu lia receitas,
via as figuras, imaginava o dia em que seria adulta pra fazer aqueles doces e
salgados.
Lembro
que, certa vez, para driblar o tédio, pedi à minha mãe que me deixasse passar a
limpo suas receitas, pois seu livro estava em frangalhos, com manchas oleosas,
certamente de manteiga ou óleo de muitas preparações. Toda dona de casa que se
prezasse, tinha um livro de receitas! Era presente quase que obrigatório do Dia
das Mães. As escolas já haviam sacramentado que, em algum momento, as mães
seriam presenteadas com um livro de receitas.
Uma
das lembranças mais doces da minha infância é a de que havia um terreno baldio
ao lado da minha casa e a vizinhança decidiu se reunir e fazer um arraial. Cada
vizinha ficou responsável por preparar um prato. Imaginem só, as delícias! Eu
sou nascida em 24 de junho, uma “Joana” por assim dizer. E, imaginem, eu achava
que era uma festa de aniversário pra mim.
Uma
das memórias culinárias afetivas me remetem à nossa condição socioeconômica,
pois sempre que tinha festas na escola, minha mãe precisava fazer quatro
preparações. E ela sempre fazia um doce chamado “Maria-mole”. Comprávamos uma
caixinha no supermercado que era baratinha e era uma delícia ajudar a passar no
coco ralado. O prato agradava e as professoras já sabiam que “Os irmãos Rostyn
traziam a Maria-Mole”.
Os
livros foram se modernizando e as receitas passaram a ter fotos. Lembro-me de
uma coleção de livros de receitas do açúcar União, que representava para mim a
riqueza, com fotos de pratos sofisticados e ingredientes que estavam fora do
nosso alcance diário. Era a “goumertização” ganhando força, louças de mesa
caríssimas, talheres e pratos sofisticados, ao alcance de poucos. Evidente que
pedi pra minha mãe fazer algumas daquelas receitas e ela me respondeu exatamente
sobre essa impossibilidade por tais motivos.
Mas,
não tem problema. Me lembro com carinho do milho refogado com tomate e cebola
que ela fazia, da carne enlatada “Fiambre”, que rendia mistura pra família
toda, da sopa de mandioquinha e outros legumes com carne moída, da polenta com
molho ou caldo de feijão, do macarrão com molho branco (que só eu comia, e
mesmo assim minha mãe fazia) e de tantas outras delícias, feitas na
simplicidade, com a maioria dos ingredientes naturais, adquiridos na feira do
dia de terça, sagrada até hoje, pois minha mãe ainda mora na mesma casa.
Quando
me casei, minhas amigas me deram dois cadernos: um de receitas doces e outro de
salgadas. Fiz umas duas que viraram sucesso. Tenho meu caderno de receitas, com
a minha letra cursiva.
Outro
dia, uma amiga me pediu uma receita de bolo de maçã, e escrevi, entreguei uma
folhinha de caderno e ela disse: “A Neyde é tradicional, achei que ela fosse
compartilhar o link da receita, mas ela veio com um papel”. Rimos juntas e
confesso que gosto de preservar certos hábitos.
É
inegável que já peguei muitas receitas na internet, mas as mais queridas,
aquelas do coração, estão nos meus cadernos de receitas, que guardo com todo
amor e carinho. Infelizmente, não localizei os livros com a letra da minha avó
(que era linda, uma forma de conhece-la um pouquinho). Mas, a minha memória
retém estes momentos, vividos e muito felizes. Ainda resiste uma receita de pudim
que vai ao forno, minha mãe faz às vezes. O pavê que só ela consegue e que
rende a piada mais sem graça do universo. Aliás, era motivo de orgulho para uma
mulher, quando ela sabia que sua receita, ainda que reproduzida, não ficaria do
mesmo jeito como quando ela fizesse. Seria bruxaria, mistério, alquimia? Não
sei. Mas que dava um orgulho danado saber que só ela sabia fazer o pudim ou o
pavê, ah, isso dava.
Sei
das nossas atuais limitações como mulher, pois não damos conta de tudo. Nossa
liberdade foi conquistada a um preço. Culinária virou hobbie, quando na verdade
é sobrevivência e independência. Acho que podemos ser o que quisermos, e quero
ser mais do que a mãe, trabalhadora, que chega esgotada e prepara um
“estrogonofe” ou um macarrão (pratos rápidos). Quero saborear o prazer de
fazer, de experimentar, mas sem me profissionalizar nisso. Quero dar à minha
família estes momentos de culinária afetiva. Preparar com meu filho um bolinho
de chuva, uma bela macarronada, um pudim ou mesmo uma pipoca. Cozinhar é
conviver, é simples, é acessível, é necessário, é terapêutico e é lindo.
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